O Ministério da Justiça é uma das áreas mais sensíveis aos interesses de Bolsonaro, que se tornou alvo de um inquérito que o investiga sob acusação de interferir indevidamente na Polícia Federal. A denúncia foi apresentada pelo então titular da pasta Sérgio Moro em 24 de abril do ano passado, dia em que ele deixou o cargo.
Após a saída de Moro do governo, ministros do Supremo se manifestaram a favor da escolha de Mendonça para substituí-lo. Luís Roberto Barroso e Ricardo Lewandowski, expoentes de alas opostas dentro da Corte, se uniram em elogios ao auxiliar do presidente.
Genocídio
O desgaste na imagem do atual chefe da Advocacia-Geral da União veio com o uso recorrente da Lei de Segurança Nacional. Aplicada por Mendonça e pela Polícia Federal, essa legislação se tornou alvo de ações apresentadas no Supremo por partidos de diferentes matizes ideológicos, como PTB, PSDB, PSB, PT, PSOL e PC do B, que desejam a derrubada, total ou parcial, do texto herdado da ditadura militar.
O relator desses processos é o ministro Gilmar Mendes, que entrou na mira do governo após dizer, em julho do ano passado, que o Exército está se “associando a esse genocídio”, em uma crítica à atuação do governo no enfrentamento da pandemia de covid-19.
A declaração de Gilmar provocou uma crise com o Ministério da Defesa, que entrou com representação contra ele na Procuradoria-Geral da República (PGR). A Defesa também recorreu a um dispositivo da Lei de Segurança Nacional, que prevê pena de até quatro anos de prisão para quem incitar “à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis”. Segundo o Estadão apurou, o caso acabou arquivado pelo Supremo.
Ministros da Corte avaliam que a LSN precisa, sim, de ajustes e de ser interpretada à luz da nova realidade do País – democrática, e não mais ditatorial. Observam, porém, que a edição de um novo texto, para substituir o atual, cabe ao Congresso.
“Não se julga a partir de um ranço. Evidentemente nesse regime (militar), houve a prática de atos positivos e negativos, e apenas estes últimos merecem glosa (supressão). Não me pronuncio ainda sobre o fundo da questão”, disse Marco Aurélio ao Estadão.
Fóssil normativo
Em uma transmissão ao vivo pelas redes sociais, no dia 20 de março, Lewandowski afirmou que o tribunal tem um “encontro marcado” com o tema. “O Supremo precisa dizer se esse fóssil normativo é ainda compatível, não só com a letra da Constituição de 1988, mas com o espírito da mesma”, argumentou Lewandowski.
Em maio de 2016, o plenário do Supremo anulou a condenação de um homem que havia sido enquadrado na Lei de Segurança Nacional por ter sido preso com duas granadas de uso exclusivo do Exército. Por unanimidade, o STF entendeu que o crime não tinha motivação política – a intenção do réu seria roubar um banco.
“Já passou da hora de nós superarmos a Lei de Segurança Nacional, que é de 1983, do tempo da Guerra Fria, que tem um conjunto de preceitos inclusive incompatíveis com a ordem democrática brasileira”, disse Barroso na ocasião. “Há no Congresso, apresentada de longa data, uma nova lei, a Lei de Defesa do Estado Democrático e das Instituições, que a substitui de maneira apropriada. Portanto (digo isso), apenas para não parecer que estamos cogitando aplicar a Lei de Segurança Nacional num mundo que já não comporta mais parte da filosofia abrigada nessa lei, que era do tempo da Guerra Fria e de um certo tratamento da oposição como adversários”, completou o magistrado.
Em diferentes casos, porém, a Lei de Segurança Nacional já foi utilizada não só pelo governo Bolsonaro, mas pelo próprio STF. A legislação serviu, por exemplo, para fundamentar a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), após o parlamentar gravar um vídeo com ameaças e insultos a ministros do STF e fazer apologia ao Ato Institucional número 5 (AI-5), o instrumento mais duro de repressão do governo militar. Silveira foi preso no âmbito do inquérito das ameaças, ofensas e fake news contra integrantes da Corte.
A LSN também foi usada para fechar o cerco à militância digital bolsonarista em outro inquérito que atormenta o Planalto: o dos atos antidemocráticos. “Qualquer atentado à democracia afronta a Constituição e a Lei de Segurança Nacional”, escreveu Augusto Aras, ao solicitar a abertura de investigação sobre a organização e o financiamento das manifestações que pediam intervenção militar e o fechamento do Congresso e do STF.
A lei serviu, ainda, para a Polícia Civil do Rio intimar o youtuber Felipe Neto (após o influenciador digital chamar Bolsonaro de “genocida”) e para o Ministério da Justiça pedir a investigação da publicação de uma charge na qual Bolsonaro aparece transformando a cruz vermelha (símbolo de hospitais) na suástica nazista. O Ministério da Justiça também solicitou abertura de inquérito contra o colunista Hélio Schwartsman por ele ter escrito artigo no jornal Folha de S.Paulo intitulado “Por que torço para que Bolsonaro morra”.
Régua
Segundo interlocutores de Bolsonaro, é importante que o Supremo se manifeste sobre a validade da Lei de Segurança Nacional e garanta segurança jurídica. Aliados do presidente, no entanto, destacam que o tribunal deve criar “uma régua”, que valha não apenas para o uso que o governo faz da LSN, mas que sirva para o próprio STF. Na avaliação do governo, não há uso excessivo da legislação.
O número de procedimentos abertos pela Polícia Federal para apurar supostos delitos contra a segurança nacional, no entanto, aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, quando se compara o mesmo período das gestões Dilma Rousseff e Michel Temer, conforme informou o Estadão. Entre 2015 e 2016 houve um total de 20 inquéritos. Na primeira metade da administração Bolsonaro, o número saltou para 77 investigações.
“Uma lei de segurança nacional pretende proteger as instituições, e não as pessoas investidas nos cargos públicos. O que afronta a segurança nacional não é ofender o presidente da República ou o ministro do STF ou um deputado federal. O que atenta é se manifestar de forma hostil à própria instituição”, disse o advogado Fábio Tofic, mestre em Direito Penal pela USP e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Para Tofic, o governo Bolsonaro tem usado contra opositores um dispositivo da lei que viola a Constituição – o artigo 26, que prevê pena de até quatro anos de prisão para quem “caluniar ou difamar” o presidente da República.
“O governo não se incomoda com aqueles que atacam as instituições, mas se incomoda quando a pessoa do presidente da República é ofendida. É uma interpretação ainda do regime autoritário, uma leitura tirânica, que pede para banir ofensas contra o presidente, mas não contra quem prega contra o Supremo e o Congresso e louva o golpe de 1964”, afirmou o advogado.
Procurados pelo Estadão, o Palácio do Planalto, a AGU e o Ministério da Justiça não se manifestaram.