Não me resumo a uma roupa: as profissionais que enfrentam o machismo nas redes

Em profissões predominantemente masculinas, Camila e Ingrid enfrentam hostilidades por serem livres em suas redes sociais

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Em profissões predominantemente masculinas, Camila e Ingrid enfrentam hostilidades por serem livres em suas redes sociais
TNM/Por Luan Oliveira

A história da trajetória profissional de Camila Paiva é muito similar à de mulheres bem sucedidas de Alagoas e do mundo. Primeira colocada no concurso para o Corpo de Bombeiros Militar (CBM) em 2002, ficou também em primeiro lugar em sua turma da academia e entrou na corporação já como oficial, a primeira do estado. O caminho foi pavimentado por preconceitos, comentários pejorativos e um forte desgaste emocional e psicológico.

“Mesmo com toda trajetória, com toda capacidade que demonstrei, nada disso é levado em consideração devido ao machismo”, conta a tenente-coronel dos Bombeiros. O concurso do ano de 2002 foi o primeiro em que mulheres puderam participar, e ela se inscreveu sob influência de seu pai, que era bombeiro. “Eu sonhava em ser médica, tinha acabado de sair da escola. Sabia que era um emprego e um concurso estável. No primeiro mês, já estava apaixonada”.

Por ter sido a primeira colocada no concurso, Camila era sempre a primeira a realizar as provas e exercícios da Academia, que fica em Pernambuco, onde passou três anos longe dos pais e de sua terra natal. “Os rapazes sempre diziam: ‘se uma mulher pode eu também posso conseguir’, e ficavam se provocando dizendo que fulano perdeu para uma mulher”, conta. A oficial diz que, após entrar na corporação, se colocou dentro de uma caixinha comportamental.

A professora universitária e advogada Ingrid Dantas relata uma trajetória similar à de Camila. “Quando eu passei no mestrado, em primeiro lugar, perguntaram se eu tinha algum contato pessoal com alguém da bancada”, disse Ingrid. “Quando um homem consegue algo, é esforço, capacidade, dedicação. Porque quando uma mulher conquista algo se questiona primeiramente se houve um favorecimento sexual?”.

Ambas compartilham uma característica: mulheres fortes, independentes e que não tem medo de exibir suas conquistas e estilo de vida nas redes sociais. Ambas suas histórias de libertação não vieram, contudo, antes de muita dor.

Camila conta que teve depressão e teve de passar inclusive por tratamento psicológico antes de conseguir se libertar das amarras do machismo. “Você é uma oficial militar, uma mãe, uma esposa. Você tem que entrar em uma caixinha, seguir certo comportamento”, diz. “Se pede sempre que a mulher abra mão de quem ela é”.

Ingrid diz que colocou um ponto final em uma relação após um episódio de violência, e isso a marcou. “Mesmo com todo o abuso, a gente nunca acha que vai chegar a isso, até que chega”, diz. Após o episódio, ela fez uma publicação nas redes sociais expondo o que houve, mas não sem sentir o que descreveu como extrema dor.

“Depois disso eu me senti liberta. Liberdade de fato é você viver sem medo”, conta.

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Positividade e orgulho

Ingrid e Camila, hoje, relatam receber os mesmos tipos de comentários nas redes sociais devido a imagens em que aparecem curtindo o melhor que a vida na capital alagoana tem a oferecer: sol, praia e boa companhia. “Conheço muitos oficiais que postam fotos sem camisa, treinando na academia, como a gente vê tanto, isso não seria motivo para ser questionada a sua trajetória profissional”, conta Camila.

“Aquela foto expressa todo um caminho que eu conquistei com altas penas de me aceitar”, defende Ingrid. “A Ingrid mulher, que tira fotos de biquíni, pratica esportes, é a mesma ingrid que é profissional”. Ela diz que essas imagens servem, inclusive, de inspiração para alunos e colegas de trabalho, demonstrando ser possível viver uma vida equilibrada entre lazer e trabalho duro e competente.

“Eu sei da profissional que sou, da minha trajetória; eu sei que minha capacidade e minha história não se resumem a uma roupa, uma foto de biquíni no meu instagram”, contou Camila.

Hoje, elas usam seu tempo e aprendizado para ajudar outras mulheres a se destacarem. Na sala de aula, Ingrid sempre busca ajudar suas alunas mulheres. “Uma vez, no Carnaval, estava na praia e recebi uma ligação de uma aluna dizendo que precisava de ajuda. Larguei tudo e fui na hora”, relata.

Camila é uma figura comum em diversas palestras de empoderamento feminino no meio militar, e usa suas redes sociais para promover a luta. A primeira mulher a liderar uma associação militar mista no país é um alvo constante de ameaças e assédios. Subalternos seus já circularam fotos suas em grupos nas redes, onde faziam comentários abusivos. Um dos casos chegou à polícia, e até hoje está sob investigação.

“Havia um grupo que expressava ódio à mulheres, gays, negros”, conta. A comunidade de extrema-direita vazou dados pessoais seus e de seus familiares, em um ataque que ainda hoje se arrasta na polícia e envolve agentes de mais de um estado.

Tanto sofrimento, diz Ingrid, poderia ter sido pior. “A mulher negra, mais do que a mulher branca, sofre muito. A população LGBTQI+, segregada, diminuída por sua sexualidade”, citou como exemplos a professora, reconhecendo seus privilégios enquanto mulher branca de classe média-alta.

Um mundo masculino

Ingrid Dantas apontou o caso de uma publicação científica renomada da área da medicina que apontou que fotos com comportamento “não profissional” eram mais comuns entre jovens e que deveriam ser evitados por afetar a escolha dos clientes. O estudo em questão foi publicado pelo Journal of Vascular Surgery em 2020, e foi recebido com críticas e protestos, principalmente de médicas, e foi retratado pela publicação.

Um apontamento interessante foi feito no estudo: imagens ‘não profissionais’, como as de roupa de banho e com bebidas alcoólicas, não eram mais predominantes entre um gênero. Tanto homens como mulheres eram habituados a fazer publicações do tipo. O sexo masculino, contudo, não aparenta ter sua credibilidade questionada por isso.

Professor universitário de jornalismo, Alan Soares mostra nas redes uma vida semelhante às de Camila e Ingrid. Uma imagem comemorando sua aprovação em um doutorado convive ao lado do lazer na piscina e da festa com os amigos. “Se eu vou ministrar uma aula no fim do dia e durante todo o dia eu tenho um dia livre, eu posso durante esse tempo ir a uma praia, ir a uma academia”, explica.

“Tem como todas as coisas entrarem nos eixos”. Ele diz que não sentiu em nenhum momento ter tido sua vida profissional e acadêmica prejudicada por seus hábitos ou conteúdo de suas redes sociais. O professor ressalta, contudo, que existe uma linha muito tênue entre superexposição e ser ativo nas redes. A questão, defende, independe de gênero, mas pesa o fato de se viver em uma sociedade extremamente machista e preconceituosa.

É preciso, para ele, desconstruir algumas percepções sobre a questão. “Porque mulheres de biquini na praia com os amigos bebendo descredibiliza ou desautoriza ela em determinada profissão, e um homem que está lá de sunga, fazendo a mesma coisa, não fica descredibilizado por isso?”, questiona.

Resistindo e remando contra a maré, Camila Paiva seguirá com seu trabalho no Corpo de Bombeiros e levando uma mensagem de positividade e luta para as mulheres do estado e do país. Ingrid Dantas diz que irá levar sua luta para um outro lugar, onde buscará o título de doutora em direito. Ambas não se desapegam, contudo, de seus canais nas redes sociais, onde buscam levar inspiração e educação para todos.

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